quarta-feira, 13 de dezembro de 2017

O SER DA PESCA ARTESANAL: BREVES QUESTÕES PARA O DEBATE


Cristiano Wellington Noberto Ramalho[1]

Fotos: Estuário do Rio Una, Comunidade do Abreu do Una. Bill Santos
1. Apresentação:

O que é o ser da pesca artesanal? Essa indagação possui uma relação direta com o fazer-se pescador(a), cujas formas e determinações da existência não podem estar dissociados da natureza e nem do trabalho da pesca (a pescaria).
 Ofertar caminhos para responder a essa pergunta é mais que necessário, especialmente no atual cenário. Nesse sentido, para além da questão legal contida na lei nº 11.959, de 29 de junho de 2009, que define a pesca artesanal como uma atividade “praticada diretamente por pescador profissional, de forma autônoma ou em regime de economia familiar, com meios de produção próprios ou mediante contrato de parceria, desembarcado, podendo utilizar embarcações de pequeno porte”), gostaria de adicionar outros aspectos pertencentes ao ser da pesca artesanal, que, no Brasil, tem mais de 1 milhão de pessoas.
Inspirado em reflexões que fiz anteriormente (RAMALHO, 2006, 2011, 2012, 2016 e 2017), focalizo alguns eixos (a meu ver, importantes), os quais serão separados apenas para fins argumentativos/teóricos, já que, no mundo objetivo da pesca, eles se complementam num metabolismo permanente. A ideia é colocar, através deste breve e simples texto, questões para o debate.

2. As Dinâmicas Ecológicas:

Em decorrência dos distintos ambientes pesqueiros e das suas particularidades ecológicas, mulheres e homens desenvolveram conhecimentos singulares que os permitiram apropriar-se dos ecossistemas, seja em termos simbólicos, seja em termos materiais, ao longo de décadas, onde o tempo social irmanou-se com o tempo natural.
Isso evidenciou que os ambientes (rios, estuários, oceano, manguezais, açudes, etc.) influenciaram nas distintas formas de ser e de fazer-se pescador(a) artesanal, porque ao se viver da pesca vivesse sendo natureza, influenciando-se pelas dinâmicas, sazonalidades e variações (físico-químicas e biológicas) do ambiente. Por isso, pescar artesanalmente não é alienar-se da natureza, apartar-se dela, pois quando isso se dá o(a) pescador(a) perde algo central em seu modo de vida, em sua condição de ser e fazer-se pescador(a): a sua integralidade às dinâmicas ecológicas.
A pesca artesanal, dessa maneira, caracterizou-se pela pluralidade de captura de pescados diferentes, através da utilização variada de técnicas e de tecnologias. Mesmo quando algum(a) trabalhador(a) “especializa-se” na pesca de determinada espécie (a exemplo da tainha, no Sul e Sudeste do Brasil, camarão, lagosta, marisco no Nordeste), devido à época e/ou à influência do mercado, esse “tipo de especialidade”, com sua racionalidade, não bloqueia a condição plural típica do trabalho pesqueiro artesanal para lidar com os recursos aquáticos diversos.  E esse é mais um componente que certifica a ligação desse sujeito com os ritmos da natureza nas suas estratégias para existir.
Com isso, as explicações sobre o funcionamento e as características dos mangues, estuários, rios, mar, das variedades de pescados, fases da lua, tipos de ventos, bem como as suas conexões numa totalidade em completude e em permanente movimento, surgiram e foram repassadas de pai para filho, por meio de saberes e fazeres produzidos nas comunidades locais enquanto patrimônio societário.
Saberes que devem ser validados rotineiramente pelos fazeres produtivos, e fazeres que se realizam ao construir novos e confirmar antigos saberes para que ambos se mesclem e ganhem legitimidade sócio-cultural, econômica e ambiental. Essa é uma forma de saber naturalístico. Um saber-fazer que explicita uma ciência do concreto. Isso forjou laços de pertencimento (entre o ser pescador e a natureza e entre o próprio grupo, inclusive na autoridade da pessoa do mestre) e possibilitou que essas populações pudessem reproduzir-se no transcurso dos anos em determinados territórios, como parte e componente de suas paisagens. 
Também as dinâmicas ecológicas são vistas e vividas, em muitas localidades, como um ente regido por forças sagradas, místicas, sobrenaturais, religiosas, onde a ação humana, por mais integrada que esteja ao ambiente, não as subordinada, aliás, o ser da pesca entende que a natureza responde e expressa às vontades de Deus.
E quando as dinâmicas ecológicas são impactadas negativamente pelas intervenções humanas (especialmente aquelas que brotam da força de expansão da economia capitalista com seus interesses de classes), os territórios da pesca ficam empobrecidos em suas biodiversidades, em seus ciclos de reprodução biológica e o ser da pesca artesanal tem sua continuidade social ameaçada diretamente em decorrência da própria condição de empobrecimento da natureza. 

3. A pescaria:

A pescaria é a materialização de um conhecimento encarnado no trabalho, que possibilita homens e mulheres capturarem diferentes tipos de pescados, a partir de habilidades inscritas nos usos dos seus corpos e de seus sentidos que deságuam, a depender do que se captura, na utilização criativa de determinados equipamentos (barcos, armadilhas, etc.). Tudo isso em consonância com os ritmos das dinâmicas ecológicas.
Se por um lado, a pescaria é a mediação técnica (habilidade, talento, arte de ser e fazer-se pescador ou pescadora) e tecnológica (equipamentos utilizados no fazer produtivo por mais simples que sejam) entre o ser humano e o pescado (a natureza), por outro, não deixa de ser, também, processos de organização sócio-produtiva com seus sistemas de parceria baseados na família, no compadrio e/ou nas relações de vizinhança – os quais regem a vida comunitária ancestralmente e  avivam, no dia a dia, as formas tradicionais de partilha dos ganhos sobre os pescados capturados (a depender da região pode dar-se o nome de banda, quinhão, linha junta ou separada, captura individual ou coletiva, dentre outras classificações).
Mesmo quando o barco e as armadilhas pertencem a terceiros (comerciantes, por exemplo), não se abre mão, necessariamente, da utilização dos antigos sistemas de partilha apoiados em processos tradicionais de organização sócio-produtiva, embora isso tenha, em muitas situações, uma coloração desigual, particularmente por funcionar em benefício de quem não trabalha diretamente na pesca.
Então, nesses casos em que a desigualdade é mais acentuada, gesta-se uma divisão social no trabalho pesqueiro baseada numa estrutura de classes, que ameaça ou põem fim ao modo de vida dos pescadores artesanais. Muitos desses grupos estão, no mínimo, no limar de abandonarem a condição de pescadores artesanais para se tornarem trabalhadores da pesca (a exemplo de alguns lagosteiros), ou seja, a pesca torna-se apenas uma profissão voltada stricto sensu a um negócio, subsumindo o modo de vida em favor do mercado.
No fazer-se pescador artesanal - as tecnologias – mesmo as modernas – foram (e são) incorporadas, de modo subordinado, à principal força produtiva da pesca artesanal: o saber-fazer patrimonial. Se isso se inverte, o ser da pesca artesanal sucumbe, passando por uma transição ao tornar-se um outro. Deixa, com isso, de ocupar o seu lugar social, o de artesão ou o de artesã das águas.
No feixe de relações sociais presentes nas pescarias artesanais, é claro que existem hierarquias, mas elas são fundadas na autoridade do conhecimento (na pessoa do mestre ou das pescadoras mais sábias na lida das marés) e no respeito aos direitos costumeiros, e não na mecânica imposição do capital.  Há princípios de igualdade, de pertencimento, de irmandade, segredos sobre pontos de pesca, formas comunais de usos das águas e valores morais compartilhados acerca do trabalho visto e sentido como arte, liberdade e beleza, enquanto uma cultura de ofício. Há laços sentimentais em relação aos seus instrumentos de trabalho e aos territórios da pesca.
Nas dinâmicas sociais das mulheres e dos homens que vivem da atividade pesqueira artesanal, a natureza (as espécies de pescados, as águas, os rios, mangues, estuários, ventos, etc.) é, além de sacralizada, humanizada permanentemente, ganhando adjetivos como esperta, braba, mansa, afoita, endiabrada, delicada, devendo ser entendida e respeitada. Em larga medida, as pescarias significam a própria formação do povo brasileiro, seu caráter plural e miscigenado, porque nelas estão presentes linguagens, técnicas, instrumentos, criatividades, compreensões, cosmologias, organizações, singularidades regionais e étnicas (tradições de trabalho africanas, portuguesas, indígenas), o que marca e confere características universais a mesma.
Assim, uma pescaria reúne várias dimensões, ora as de ordem econômica e técno-tecnológica, ora aquelas ligadas a aspectos sócio-culturais e biológicos, ora as de ordem histórica e política. Por isso, há inúmeras pescarias por existir muitas formas de ser e de fazer pescador(a) artesanal, que, independentemente de suas singularidades vivem na (e da) mesma água oriunda do oceano chamado pesca artesanal.

4. O Ser Pescador(a):

Historicamente, os pescadores e as pescadoras artesanais pertencem às camadas populares. No primeiro momento, foram as mulheres e os homens indígenas e, depois, as etnias africanas (e seus descendentes alforriados ou não) e os pobres portugueses que forjaram e ocuparam a condição de pescadores(as) artesanais nos rios, mangues, estuários e nas águas marinhas, trazendo, na maior parte dos casos, antigas tradições e costumes - na lida com as águas - que se mesclaram numa simbiose renovada de norte a sul no Brasil.
As jangadas são exemplos disso, e o mesmo ocorre com a ciranda, o côco, os cantos de trabalho, a devoção a Iemanjá, a Nossa Senhora, a São Pedro, o respeito ao Velho do Mangue, às histórias de botos, as procissões marítimas, os ex-votos.
São muitas as representações culturais, os patrimônios materiais e imateriais típicos das comunidades que pescam. E eles sobrevivem na pele e na alma das pescadoras, dos pescadores, que habitam os bairros periféricos das grandes cidades (Recife, Olinda, Salvador, Belém, Florianópolis, Fortaleza, Rio de Janeiro, Natal) e, também, em várias áreas rurais do nosso País, fato que faz com que o ser da pesca não possa ser caracterizado como sujeito tipicamente ligado a algum desses referidos espaços. Na realidade, suas marcas existenciais estão irmanadas aos territórios aquáticos (rios, mar, estuários, mangues).
Por isso, as mulheres e homens, que fazem da pesca principal seu meio de vida, são portadores de um jeito de ser, de sentir, ver e viver o mundo que é apenas deles, pleno de especificidades socioculturais. Possuem um código de trabalho típico de uma cultura de ofício artesanal, com seus costumes, normas, valores, moral, processos de socialização aprendidos em família e repassados no ato de ver, fazer, falar, sentir e ouvir.
Suas condições de vida e de trabalho trazem em si implicações das relações e processos socioeconômicos mais gerais (frágil processo de formação escolar, pouco ou inexistente acúmulo de capital, ausência de políticas públicas de inclusão social), como também das situações e interações de classes, com outros segmentos da sociedade e os podres públicos, cujos mecanismos clarificam as formas de ser e as determinações de existência no ser e fazer-se pescador(a). Sem dúvida, o ser da pesca insere-se numa trama social, onde cumpre determinado papel na escala socioeconômica, enquanto produtor primário. Aqui, as condições e dinâmicas ambientais jogam um peso importante.
As pessoas que vivem da pesca, ao (re)elaborarem seu saber-fazer sobre os pescados, concretizam suas pescarias (meios técnicos, tecnológicos) num fluxo contínuo e dialético que se integra como parte de sua própria condição e de seus atributos societários locais, que não deixam de fazer parte nos processos regionais, nacionais e/ou globais, e das possibilidades ecológicas. Por isso, os negativos impactos sobre a natureza ocasionados por obras como a do Complexo Portuário, da Refinaria Abreu e Lima e do Estaleiro Naval bloqueiam a continuidade do fazer-se pescador(a) na região de Suape em Pernambuco (apenas para ficar nesse exemplo).
Ser pescadora (ou pescador) é também oportunidade socioeconômica, hábito, costume, ideologia e relações sociais comunitárias ou com outros grupos, onde produz e reproduz sua singularidade, em oposição ou em complementaridade a outros segmentos sociais no tempo e no espaço.
As pescarias são o desnudamento das razões de ser pescador, seja quando buscam adequar-se as exigências do ambiente para melhor apropriar-se dele, seja motivada pelas renovadas necessidades decorrentes das transformações econômicas, históricas, políticas e/ou culturais originárias da inserção do ser da pesca na sociedade mais abrangente.
Ademais, ser pescador(a) é encontrar-se inserido numa determinada relação na estrutura social, de comando do capital (enquanto sujeito subordinado), cujas tensões são alimentadas pelos desejos de autonomia, resignações e subordinações e estão no dia a dia. É a partir daí que se compreende o pagamento feito em “banda” ou “quinhão”; que se diferenciam os pescadores do mar-alto e do mar interior; que se entende a expansão ou permanência de processos de estranhamento, em alguns casos, diante dos impactos ambientais, da ação empresarial e/ou dos poderes públicos; que se desmistifica o trabalho feminino, seus condicionantes ecossociais e as marcas das relações patriarcais externas e internas ao grupo; que se desvela o surgimento de atos e mobilizações políticas em defesa dos territórios pesqueiros, dos direitos previdenciários e da busca pelo respeito da sociedade para com uma forma de trabalho secular e que vem ofertando, ao longo da história, garantias de soberania alimentar a milhares de pessoas que residem em incontáveis municípios pelo País; e que se encanta resistindo no (e pelo) trabalho pesqueiro artesanal.

5. Apenas alguns comentários:

Apesar desse exercício de separação feito apenas para conferir maior didatismo ao texto, valorizei a existência profundamente concatenada entre as categorias Dinâmicas Ecológicas, Pescaria e Ser Pescador(a) no que foi nomeado do Ser da Pesca Artesanal, porque esses conceitos tentam refletir um modo particular de ver, estar, sentir e vivenciar o mundo. No geral, este escrito tem a finalidade de abrir questões para que possam ser debatidas e seus argumentos aprofundados, refinados, desenvolvidos, esquecidos ou negados.

6. Bibliografia:
RAMALHO, Cristiano Wellington Noberto. Embarcadiços do encantamento: trabalho sinônimo de arte, estética e liberdade na pesca marítima. Campinas: Ceres-Unicamp; São Cristóvão, Editora da UFS, 2017.
______ . Pescados, pescarias e pescadores: notas etnográficas sobre processos ecossociais. In: Boletim Paraense Emílio Goeldi - Ciências Humanas, Belém, v. 11, n. 2, p. 391-414, maio-ago, 2016.
______ . Sentimento de corporação, cultura do trabalho e conhecimento patrimonial pesqueiro: expressões socioculturais da pesca artesanal. In: Revista de Ciências Sociais, UFC, Fortaleza, vol. 43, n. 1, p. 8-27, 2012.
______ . O sentir dos sentidos dos pescadores artesanais. In: Revista de Antropologia, USP, São Paulo, vol. 54, n. 1, p. 315-352, jan/jun, 2011.
______ . “Ah, esse povo do mar!”: um estudo sobre trabalho e pertencimento na pesca artesanal pernambucana.  São Paulo: Editora Polis; Campinas: Ceres, 2006.



[1] Professor adjunto de sociologia e pesquisador do Departamento de Sociologia (DS), do Programa de Pós-Graduação em Sociologia (PPGS) e do Laboratório de Estudos Rurais (LAE-RURAL) da UFPE. E-mail: cristiano.ramalho@ufpe.br

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