Os mares, rios e estuários sempre foram companheiros dos pescadores e das pescadoras artesanais nas suas lutas por liberdade, por autonomia, por dignidade.
Durante o período escravocrata, que perdurou no Brasil até 1888 e deixou suas sequelas ainda em nossos dias, os laços de reciprocidade e o grau de articulação existentes entre os homens e as mulheres das águas de várias comunidades, municípios, estados foram capazes de possibilitar e ajudar, consideravelmente, na fuga dos seus irmãos e irmãs de cor em busca de dias melhores.
Assim, quando uma pessoa negra fugida - da terrível condição escrava - chegava ou era trazida ao barco de um pescador para trilhar seu projeto de autonomia, isso era o mesmo que atingir-se o terreno da solidariedade e das águas esperançosas de uma possível emancipação, da resistência e da negação do não reconhecimento de serem vistos como seres humanos, indivíduos de direitos.
Muitas lutas (conhecidas ou não) existiram para libertar o povo negro e, consequentemente, as comunidades pesqueiras da condição escrava. E é aí que se destaca a história do jangadeiro Francisco José do Nascimento (nascido em 1839 e falecido em 1914), conhecido como Dragão do Mar, que lutou pelo fim da escravidão no Ceará, negando-se a levar escravos e escravas, que seriam vendidos na capital do país (Rio de Janeiro), para os navios negreiros. Sua luta foi importante para fazer com que o Ceará fosse o primeiro estado brasileiro a decretar o fim da escravidão em 1884.
E essa luta – não só do Dragão do Mar, mas de outros homens e de mulheres negras – pela autonomia e dignidade fizeram dos territórios, da natureza, das águas parceiras de vida, lugares de sonhos, de realizações e de experiências de resistências cotidianas efetivadas pelas comunidades pesqueiras.
Foi esse povo negro, o povo pesqueiro que se transformou, ao longo dos séculos, em guardião da preservação dos mangues, rios, mares, estuários, cuja simbiose fez florescer um conjunto inestimável de práticas econômicas, sociais e culturais que é, hoje, um patrimônio material e imaterial. Então, dessa interação pescador e pescadora com a natureza emergiu danças, cantos, culinária, segurança e soberania alimentar, trabalho, renda, desejos de mundo, seres encantados e pessoas encantadas, artes de pesca, modos de vida, linguagens, sociabilidades.
Dos territórios pesqueiros, portanto, brotaram vidas, biodiversidades, coexistências, que, na atualidade, permitem que mais de 1 milhão de pessoas vivam diretamente da pesca artesanal, produzindo mais de 60% dos pescados que chegam à mesa das famílias brasileiras.
E é esse patrimônio socioambiental que as comunidades pesqueiras, suas entidades representativas (associações e colônias de pesca), movimentos sociais e grupos de apoio querem proteger, defender, exigir reconhecimento, por meio de políticas públicas, para que continuem a existir e a ofertar, para a sociedade brasileira, serviços ecológicos inestimáveis, bem como possibilidades de justiça social e de combate às desigualdades e ao racismo (dentre os quais o ambiental).
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Inscrito por: Prof. Dr. Cristiano W. N. Ramalho. Dep. de Sociologia - Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFPE. Membro do Núcleo de Estudos Humanidades, Mares e Rios/NUHUMAR. E Colaborador do Conselho Pastoral dos Pescadores - Regional Nordeste 02.
Fotos: Gicleia Silva - Presidente da Colônia Z 08 do Cabo - Retratando o Desembarque Pesqueiro na Prainha dos Pescadores, na praia do Xaréu no município Pernambucano do Cabo de Sto Agostinho.
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