Cristiano
Wellington Noberto Ramalho[1]
Fotos: Estuário do Rio Una, Comunidade do Abreu do Una. Bill Santos |
1. Apresentação:
O que é o
ser da pesca artesanal? Essa indagação possui uma relação direta com o fazer-se
pescador(a), cujas formas e determinações da existência não podem estar
dissociados da natureza e nem do trabalho da pesca (a pescaria).
Ofertar caminhos para responder a essa
pergunta é mais que necessário, especialmente no atual cenário. Nesse sentido,
para além da questão legal contida na lei nº 11.959, de 29 de junho
de 2009, que define a pesca artesanal como uma atividade
“praticada diretamente por pescador profissional, de forma autônoma ou em
regime de economia familiar, com meios de produção próprios ou mediante
contrato de parceria, desembarcado, podendo utilizar embarcações de pequeno
porte”), gostaria de adicionar outros aspectos pertencentes ao ser da pesca
artesanal, que, no Brasil, tem mais de 1 milhão de pessoas.
Inspirado
em reflexões que fiz anteriormente (RAMALHO, 2006, 2011, 2012, 2016 e 2017),
focalizo alguns eixos (a meu ver, importantes), os quais serão separados apenas
para fins argumentativos/teóricos, já que, no mundo objetivo da pesca, eles se
complementam num metabolismo permanente. A ideia é colocar, através deste breve
e simples texto, questões para o debate.
2. As Dinâmicas Ecológicas:
Em
decorrência dos distintos ambientes pesqueiros e das suas particularidades
ecológicas, mulheres e homens desenvolveram conhecimentos singulares que os
permitiram apropriar-se dos ecossistemas, seja em termos simbólicos, seja em
termos materiais, ao longo de décadas, onde o tempo social irmanou-se com o
tempo natural.
Isso
evidenciou que os ambientes (rios, estuários, oceano, manguezais, açudes, etc.)
influenciaram nas distintas formas de ser e de fazer-se pescador(a) artesanal,
porque ao se viver da pesca vivesse sendo natureza, influenciando-se pelas
dinâmicas, sazonalidades e variações (físico-químicas e biológicas) do ambiente.
Por isso, pescar artesanalmente não é alienar-se da natureza, apartar-se dela,
pois quando isso se dá o(a) pescador(a) perde algo central em seu modo de vida,
em sua condição de ser e fazer-se pescador(a): a sua integralidade às dinâmicas
ecológicas.
A pesca
artesanal, dessa maneira, caracterizou-se pela pluralidade de captura de
pescados diferentes, através da utilização variada de técnicas e de
tecnologias. Mesmo quando algum(a) trabalhador(a) “especializa-se” na pesca de
determinada espécie (a exemplo da tainha, no Sul e Sudeste do Brasil, camarão,
lagosta, marisco no Nordeste), devido à época e/ou à influência do mercado,
esse “tipo de especialidade”, com sua racionalidade, não bloqueia a condição
plural típica do trabalho pesqueiro artesanal para lidar com os recursos
aquáticos diversos. E esse é mais um
componente que certifica a ligação desse sujeito com os ritmos da natureza nas
suas estratégias para existir.
Com isso,
as explicações sobre o funcionamento e as características dos mangues,
estuários, rios, mar, das variedades de pescados, fases da lua, tipos de ventos,
bem como as suas conexões numa totalidade em completude e em permanente
movimento, surgiram e foram repassadas de pai para filho, por meio de saberes e
fazeres produzidos nas comunidades locais enquanto patrimônio societário.
Saberes
que devem ser validados rotineiramente pelos fazeres produtivos, e fazeres que
se realizam ao construir novos e confirmar antigos saberes para que ambos se
mesclem e ganhem legitimidade sócio-cultural, econômica e ambiental. Essa é uma
forma de saber naturalístico. Um saber-fazer que explicita uma ciência do
concreto. Isso forjou laços de pertencimento (entre o ser pescador e a natureza
e entre o próprio grupo, inclusive na autoridade da pessoa do mestre) e
possibilitou que essas populações pudessem reproduzir-se no transcurso dos anos
em determinados territórios, como parte e componente de suas paisagens.
Também as
dinâmicas ecológicas são vistas e vividas, em muitas localidades, como um ente
regido por forças sagradas, místicas, sobrenaturais, religiosas, onde a ação
humana, por mais integrada que esteja ao ambiente, não as subordinada, aliás, o
ser da pesca entende que a natureza responde e expressa às vontades de Deus.
E quando
as dinâmicas ecológicas são impactadas negativamente pelas intervenções humanas
(especialmente aquelas que brotam da força de expansão da economia capitalista com
seus interesses de classes), os territórios da pesca ficam empobrecidos em suas
biodiversidades, em seus ciclos de reprodução biológica e o ser da pesca
artesanal tem sua continuidade social ameaçada diretamente em decorrência da
própria condição de empobrecimento da natureza.
3. A pescaria:
A
pescaria é a materialização de um conhecimento encarnado no trabalho, que
possibilita homens e mulheres capturarem diferentes tipos de pescados, a partir
de habilidades inscritas nos usos dos seus corpos e de seus sentidos que
deságuam, a depender do que se captura, na utilização criativa de determinados
equipamentos (barcos, armadilhas, etc.). Tudo isso em consonância com os ritmos
das dinâmicas ecológicas.
Se por um
lado, a pescaria é a mediação técnica (habilidade, talento, arte de ser e
fazer-se pescador ou pescadora) e tecnológica (equipamentos utilizados no fazer
produtivo por mais simples que sejam) entre o ser humano e o pescado (a
natureza), por outro, não deixa de ser, também, processos de organização
sócio-produtiva com seus sistemas de parceria baseados na família, no compadrio
e/ou nas relações de vizinhança – os quais regem a vida comunitária
ancestralmente e avivam, no dia a dia,
as formas tradicionais de partilha dos ganhos sobre os pescados capturados (a
depender da região pode dar-se o nome de banda, quinhão, linha junta ou
separada, captura individual ou coletiva, dentre outras classificações).
Mesmo
quando o barco e as armadilhas pertencem a terceiros (comerciantes, por
exemplo), não se abre mão, necessariamente, da utilização dos antigos sistemas
de partilha apoiados em processos tradicionais de organização sócio-produtiva, embora
isso tenha, em muitas situações, uma coloração desigual, particularmente por
funcionar em benefício de quem não trabalha diretamente na pesca.
Então,
nesses casos em que a desigualdade é mais acentuada, gesta-se uma divisão
social no trabalho pesqueiro baseada numa estrutura de classes, que ameaça ou
põem fim ao modo de vida dos pescadores artesanais. Muitos desses grupos estão,
no mínimo, no limar de abandonarem a condição de pescadores artesanais para se
tornarem trabalhadores da pesca (a exemplo de alguns lagosteiros), ou seja, a
pesca torna-se apenas uma profissão voltada stricto sensu a um negócio,
subsumindo o modo de vida em favor do mercado.
No
fazer-se pescador artesanal - as tecnologias – mesmo as modernas – foram (e
são) incorporadas, de modo subordinado, à principal força produtiva da pesca artesanal:
o saber-fazer patrimonial. Se isso se inverte, o ser da pesca artesanal
sucumbe, passando por uma transição ao tornar-se um outro. Deixa, com isso, de
ocupar o seu lugar social, o de artesão ou o de artesã das águas.
No feixe
de relações sociais presentes nas pescarias artesanais, é claro que existem
hierarquias, mas elas são fundadas na autoridade do conhecimento (na pessoa do
mestre ou das pescadoras mais sábias na lida das marés) e no respeito aos
direitos costumeiros, e não na mecânica imposição do capital. Há princípios de igualdade, de pertencimento,
de irmandade, segredos sobre pontos de pesca, formas comunais de usos das águas
e valores morais compartilhados acerca do trabalho visto e sentido como arte,
liberdade e beleza, enquanto uma cultura de ofício. Há laços sentimentais em
relação aos seus instrumentos de trabalho e aos territórios da pesca.
Nas
dinâmicas sociais das mulheres e dos homens que vivem da atividade pesqueira
artesanal, a natureza (as espécies de pescados, as águas, os rios, mangues,
estuários, ventos, etc.) é, além de sacralizada, humanizada permanentemente,
ganhando adjetivos como esperta, braba, mansa, afoita, endiabrada, delicada,
devendo ser entendida e respeitada. Em larga medida, as pescarias significam a
própria formação do povo brasileiro, seu caráter plural e miscigenado, porque
nelas estão presentes linguagens, técnicas, instrumentos, criatividades,
compreensões, cosmologias, organizações, singularidades regionais e étnicas
(tradições de trabalho africanas, portuguesas, indígenas), o que marca e
confere características universais a mesma.
Assim,
uma pescaria reúne várias dimensões, ora as de ordem econômica e
técno-tecnológica, ora aquelas ligadas a aspectos sócio-culturais e biológicos,
ora as de ordem histórica e política. Por isso, há inúmeras pescarias por
existir muitas formas de ser e de fazer pescador(a) artesanal, que,
independentemente de suas singularidades vivem na (e da) mesma água oriunda do
oceano chamado pesca artesanal.
4. O Ser Pescador(a):
Historicamente,
os pescadores e as pescadoras artesanais pertencem às camadas populares. No
primeiro momento, foram as mulheres e os homens indígenas e, depois, as etnias
africanas (e seus descendentes alforriados ou não) e os pobres portugueses que
forjaram e ocuparam a condição de pescadores(as) artesanais nos rios, mangues,
estuários e nas águas marinhas, trazendo, na maior parte dos casos, antigas
tradições e costumes - na lida com as águas - que se mesclaram numa simbiose
renovada de norte a sul no Brasil.
As
jangadas são exemplos disso, e o mesmo ocorre com a ciranda, o côco, os cantos
de trabalho, a devoção a Iemanjá, a Nossa Senhora, a São Pedro, o respeito ao
Velho do Mangue, às histórias de botos, as procissões marítimas, os ex-votos.
São
muitas as representações culturais, os patrimônios materiais e imateriais
típicos das comunidades que pescam. E eles sobrevivem na pele e na alma das
pescadoras, dos pescadores, que habitam os bairros periféricos das grandes
cidades (Recife, Olinda, Salvador, Belém, Florianópolis, Fortaleza, Rio de
Janeiro, Natal) e, também, em várias áreas rurais do nosso País, fato que faz
com que o ser da pesca não possa ser caracterizado como sujeito tipicamente
ligado a algum desses referidos espaços. Na realidade, suas marcas existenciais
estão irmanadas aos territórios aquáticos (rios, mar, estuários, mangues).
Por isso,
as mulheres e homens, que fazem da pesca principal seu meio de vida, são
portadores de um jeito de ser, de sentir, ver e viver o mundo que é apenas
deles, pleno de especificidades socioculturais. Possuem um código de trabalho
típico de uma cultura de ofício artesanal, com seus costumes, normas, valores, moral,
processos de socialização aprendidos em família e repassados no ato de ver,
fazer, falar, sentir e ouvir.
Suas
condições de vida e de trabalho trazem em si implicações das relações e
processos socioeconômicos mais gerais (frágil processo de formação escolar,
pouco ou inexistente acúmulo de capital, ausência de políticas públicas de
inclusão social), como também das situações e interações de classes, com outros
segmentos da sociedade e os podres públicos, cujos mecanismos clarificam as
formas de ser e as determinações de existência no ser e fazer-se pescador(a).
Sem dúvida, o ser da pesca insere-se numa trama social, onde cumpre determinado
papel na escala socioeconômica, enquanto produtor primário. Aqui, as condições
e dinâmicas ambientais jogam um peso importante.
As pessoas que vivem da pesca, ao (re)elaborarem seu saber-fazer
sobre os pescados, concretizam suas pescarias (meios técnicos, tecnológicos)
num fluxo contínuo e dialético que se integra como parte de sua própria
condição e de seus atributos societários locais, que não deixam de fazer parte
nos processos regionais, nacionais e/ou globais, e das possibilidades
ecológicas. Por isso, os negativos impactos sobre a natureza ocasionados por
obras como a do Complexo Portuário, da Refinaria Abreu e Lima e do Estaleiro
Naval bloqueiam a continuidade do fazer-se pescador(a) na região de Suape em
Pernambuco (apenas para ficar nesse exemplo).
Ser pescadora (ou pescador) é também oportunidade socioeconômica,
hábito, costume, ideologia e relações sociais comunitárias ou com outros
grupos, onde produz e reproduz sua singularidade, em oposição ou em
complementaridade a outros segmentos sociais no tempo e no espaço.
As pescarias são o desnudamento das razões de ser pescador, seja
quando buscam adequar-se as exigências do ambiente para melhor apropriar-se
dele, seja motivada pelas renovadas necessidades decorrentes das transformações
econômicas, históricas, políticas e/ou culturais originárias da inserção do ser
da pesca na sociedade mais abrangente.
Ademais, ser pescador(a) é encontrar-se inserido numa determinada
relação na estrutura social, de comando do capital (enquanto sujeito
subordinado), cujas tensões são alimentadas pelos desejos de autonomia,
resignações e subordinações e estão no dia a dia. É a partir daí que se
compreende o pagamento feito em “banda” ou “quinhão”; que se diferenciam os
pescadores do mar-alto e do mar interior; que se entende a expansão ou
permanência de processos de estranhamento, em alguns casos, diante dos impactos
ambientais, da ação empresarial e/ou dos poderes públicos; que se desmistifica
o trabalho feminino, seus condicionantes ecossociais e as marcas das relações
patriarcais externas e internas ao grupo; que se desvela o surgimento de atos e
mobilizações políticas em defesa dos territórios pesqueiros, dos direitos
previdenciários e da busca pelo respeito da sociedade para com uma forma de
trabalho secular e que vem ofertando, ao longo da história, garantias de
soberania alimentar a milhares de pessoas que residem em incontáveis municípios
pelo País; e que se encanta resistindo no (e pelo) trabalho pesqueiro
artesanal.
5. Apenas alguns comentários:
Apesar desse exercício de separação feito apenas para conferir
maior didatismo ao texto, valorizei a existência profundamente concatenada
entre as categorias Dinâmicas Ecológicas, Pescaria e Ser
Pescador(a) no que foi nomeado do Ser
da Pesca Artesanal, porque esses conceitos tentam refletir um modo
particular de ver, estar, sentir e vivenciar o mundo. No geral, este escrito
tem a finalidade de abrir questões para que possam ser debatidas e seus
argumentos aprofundados, refinados, desenvolvidos, esquecidos ou negados.
6. Bibliografia:
RAMALHO, Cristiano Wellington Noberto. Embarcadiços do encantamento: trabalho
sinônimo de arte, estética e liberdade na pesca marítima. Campinas:
Ceres-Unicamp; São Cristóvão, Editora da UFS, 2017.
______ . Pescados, pescarias e pescadores: notas etnográficas sobre processos
ecossociais. In: Boletim Paraense Emílio Goeldi - Ciências Humanas, Belém, v. 11, n.
2, p. 391-414, maio-ago, 2016.
______ . Sentimento de corporação, cultura do trabalho e
conhecimento patrimonial pesqueiro: expressões socioculturais da pesca
artesanal. In: Revista de Ciências
Sociais, UFC, Fortaleza, vol. 43, n. 1, p. 8-27, 2012.
______ . O sentir dos sentidos dos pescadores artesanais. In: Revista de Antropologia, USP, São Paulo, vol. 54, n. 1, p. 315-352,
jan/jun, 2011.
______ . “Ah, esse povo do mar!”: um estudo sobre trabalho e pertencimento na
pesca artesanal pernambucana. São
Paulo: Editora Polis; Campinas: Ceres, 2006.
[1] Professor adjunto de
sociologia e pesquisador do Departamento de Sociologia (DS), do Programa de
Pós-Graduação em Sociologia (PPGS) e do Laboratório de Estudos Rurais
(LAE-RURAL) da UFPE. E-mail: cristiano.ramalho@ufpe.br
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